quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

As bases filosóficas da Ikebana: Budismo


Vindo da China, o Budismo chega ao Japão no século VI d.C., dando início a um grande sincretismo religioso com as crenças já existentes. A verdade é que, à semelhança do Xintoísmo e do Bushidô, há uma grande variedade de correntes no Budismo, todas sujeitas a uma ampla gama de interpretações.

De toda forma, a origem do Budismo remontaria historicamente a Siddhartha Gautama, da família real dos Shakyamuni, príncipe que teria vivido cinco séculos antes de Cristo. Após intensa busca espiritual, Gautama teria concluído que a vida é sofrimento e que as causas deste sofrimento seriam o desejo e apego pelas coisas materiais – dilema que continua mais desafiador do que nunca na atual sociedade do consumo.

Após um longo período de jejum e meditação, Gautama teria alcançado níveis elevados de consciência e despertado para a realidade do mundo (Buda quer dizer “desperto” em sânscrito). A partir desta constatação, ele teria indicado os caminhos para a libertação do sofrimento, entre eles o não-apego, a superação do ódio, da luxúria e da ignorância.

Em Mente Zen – Mente de Principiante (Editora Palas Athena), o mestre japonês Shunryu Suzuki (1904-1971) aponta como elementos importantes do Zen Budismo a não dualidade: a separação entre as pessoas e coisas seria mental. O ideal seria a transcendência de todas as distinções e particularidades. Na Ikebana, a unidade entre planta e praticante é apontada pelo atual grão-mestre da escola Ikenobo, Sen’ ei Ikenobo.

O segundo ponto que se pode salientar na relação entre o Budismo e a Ikebana é a noção de impermanência: o tempo é considerado um círculo sem princípio nem fim – está sempre mudando. Na Ikebana, esta noção fica transparente no cuidado que o sensei tem na escolha das plantas que serão empregadas, uma vez que elas representam a estação. Diferentemente de uma arranjo ocidental – vamos supor um belo bouquet de rosas --, o arranjo de Ikebana em geral tem componentes que indicam passado (uma flor bem aberta ou uma folha já velhinha), presente (uma flor em seu auge) e futuro (um botão ou galho ainda novo). Simbolicamente, a Ikebana sugere os ciclos da vida.

Finalmente, um terceiro ponto do Budismo que pode ser associado à Ikebana é a relação de não-eu na execução e na admiração do arranjo. Para o Budismo, a vida individual é apenas um instante da eternidade, uma ve z que se entende que após a passagem para o além a pessoa não terá mais a consciência separada do todo. Assim, quanto menos “eu” houver na composição, mais este espírito do grande Vazio será ressaltado por meio da beleza da própria planta. Neste sentido, a professora Emília Tanaka costuma dizer que o ideal não é fazermos o que quisermos com a planta, mas buscar entender o que ela deseja expressar.

Essas reflexões sobre a influência do Budismo, do Bushidô e do Xintoísmo, claro, não aparecem formalmente explicadas nas aulas de Ikebana. Como em qualquer arte com inspiração zen budistas, prioriza-se sempre a prática em vez da especulação teórica. Seria uma meditação em ação, no conceito do monge vietnimita zen budista Thich Nhât Hanh, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1967. É como se o intelecto humano fosse imperfeito e pequeno demais para dar conta da grandiosidade que é tornar um arranjo feito de plantas uma experiência que transcende a ética, a estética e a técnica.

Texto: Monica Martinez
Imagem: Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, de Katsushika Hokusai (1760-1849)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

As bases filosóficas da Ikebana: o Bushidô

A dedicação a uma arte como forma de desenvolvimento pessoal é um dos traços da ikebana que podem ser associados ao Bushidô. O termo, que significa o Caminho do Guerreiro, foi introduzido no Ocidente por Nitobe Inazô, autor japonês que se casou com uma estadunidense, mudando-se para a Filadélfia. Em 1899, Inazô lançou o livro Bushidô: A Alma do Japão (Bushidô: The Soul of Japan), que se tornou um bestseller. É claro que o registro da admiração por algumas das características da classe guerreira, como o domínio da arte da espada, aparece bem antes, ao redor do século 8 d.C.

Do xintoísmo, o bushidô herda a devoção aos antepassados e a lealdade ao senhor feudal e ao imperador. O traço humanista, com o esforço de aperfeiçoamento moral e social, viria do confucionismo. Charles Moore, em Filosofia: Oriente e Ocidente, lembra que Confucio (551-479 a C) foi um grande organizador social, tendo uma proposta de aplicação muito prática de seus ideais: “Quando o pai é pai, o filho é filho, o irmão mais velho é irmão mais velho, o marido é marido e a esposa é esposa – então a família está na ordem adequada, tudo estará bem no mundo (p. 296). No capítulo História da Filosofia Chinesa, da mesma obra, o ex-professor de filosofia chinesa no Dartmouth College, Chan Wing-tsit, explica que para o pensador chinês o ser humano vinha em primeiro lugar.

A partir deste núcleo estruturante, o resto seria consequência. Segundo Confúcio “quando as coisas forem inteiramente investigadas, o conhecimento se estenderá ao máximo. Quando o conhecimento se estender ao máximo, as nossas ideias se tornarão verdade. Quando as nossas ideias se tornarem verdade, nossas mentes serão retificadas. Quando nossas mentes forem retificadas, nosso caráter individual será melhorado. Quando nosso caráter individual for melhorado, nossa família será bem ordenada. Quando as famílias forem ordenadas, o Estado será bem governado. Quando os estados forem bem governados, todo o mundo estará em paz” (p. 297).

O Bushidô consolida-se no século 12 e, no 17, ocorre um marco: com o xogunato dos Tokugawa, em 1603, o título de samurai passa a ser transmitido de pai para filho. Era o fim da mobilidade social nesta classe social. Do século 16 ao 19, período considerado pacífico nas ilhas japonesas, os ideais da bravura acima da própria vida, lealdade e obediência ao dever, ao governante e à pátria são enfatizados. Na ausência de guerras, os samurais dedicam-se às artes, entre elas a ikebana.

A grande reforma realizada na era Meiji (1868-1912) põe um fim à classe dos samurais, que é abolida em 1876, quando é criado um exército nacional ao modo do Ocidente. As espadas (katanas)são retiradas, bem como o status social e os honorários governamentais. Com isso, entra em declínio a tradição e os valores dos samurais – queda que está registrada no Ocidente no filme O Último Samurai (2003), estrelado pelo astro hollywoodiano Tom Cruise. Resta o espírito de honra destes guerreiros, que em alguma medida ainda permeia a cultura japonesa até os dias atuais.

Texto: Monica Martinez

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

As bases filosóficas da ikebana: o xintoísmo


A meu ver, a ikebana reúne duas grandes tradições nativas japonesas, o Xintô e o Bushidô, além do Budismo originário da Índia, que chegou ao país vindo da China e foi sendo incorporado às práticas locais a partir do século VI d.C..

A primeira tradição é a do xintoísmo (Xinto significa o Caminho dos Deuses). Durante a aula do professor Manabu Noda, do Instituto de Treinamento Central Ikenobo, de Kyoto, Japão, realizada em outubro de 2010, foi surpreendente notar a delicadeza com que o docente limpava a borda do vaso após a finalização do arranjo. Para concluir a obra, ele despejou delicadamente água de um recipiente especial, tornando aquele simples gesto um grande ritual de purificação.

Em Filosofia: Oriente e Ocidente (editora Cultrix), o estudioso Charles Moore, ex-professor de filosofia da Universidade de Yale, lembra que “pureza e limpeza são ideais práticos e espirituais” do xintoísmo (p. 287), a mais primeva das crenças japonesas. Na mesma obra, Shunzo Sakamaki, professor de História da Universidade do Havaí, lembra que as orações então feitas eram para o “bem-estar físico e a prosperidade temporal” (p. 152).

O motivo? Como o mitólogo Joseph Campbell lembra em O Poder do Mito (Editora Palas Athena), não havia os conceitos de pecado ou benção espiritual divina como existentes no pensamento judaico-cristão. Sakamaki diz que não havia sequer uma palavra para “designar a Natureza como algo à parte e distinto do Homem (...). Este era tratado como parte integrante de um todo, intimamente associado e identificado com os elementos e as forças do mundo em seu redor (p. 150).

Talvez a união do ser humano com o todo no xintoísmo ajude a compreender a fala do atual grão-mestre Sen´ei Ikenobo, quando ele diz que: “Os laços da flor com a natureza rompem-se no momento em que ela é cortada. Ao ser colocada em um vaso, a alma da flor e a alma do amante das flores fundem-se numa só chama. Neste instante, que ao longo do tempo os grãos-mestres vêm chamando de kiwa, a planta renasce".

De toda forma, essa noção do ser humano integrado à Natureza, de a terra ser um espaço sagrado – tão cara à mentalidade de preservação ambiental contemporânea – está na base das duas regras fundamentais da ikebana ikenobo conforme explicado pelo docente Noda: o espírito de harmonia e a beleza do espaço. O espírito de harmonia tenta reproduzir a beleza da planta natural. Já a beleza do espaço procura acolher os espaços vazios como parte da composição do arranjo. Como a professora Emília Tanaka costuma dizer, as plantas são reavivadas de forma artística, isto é, ação humana tem o objetivo de ressaltar ainda mais a beleza das plantas.

Segundo Sakamaki , o “universo físico era considerado tripartido – o firmamento etéreo acima, o mundo na superfície da terra, e as sombrias regiões inferiores nas entranhas dela” (p. 150). Parece , portanto, que o xintoísmo também ajuda a compreender a base técnica de alguns dos estilos, como o Shoka, com sua divisão entre galho principal (shin), que na escola ikenobo representa o ser humano; galho secundário (soe), o céu; e galho terciário (tai), a terra.

Finalmente, e à semelhança de muitas outras tradições, o Xinto entende que o império japonês tem uma linhagem divina, uma vez que segundo esta tradição a dinastia teria sido fundada por um neto da Deusa Sol há mais de dois mil anos. Trata-se, claro, de uma base mítica e não histórica, porém esta seria a base do senso de lealdade do cidadão para com os pais, os mais velhos, os superiores, o país e o imperador. E também explicaria a profunda reverência entre aprendiz e o mestre que ensina sua arte.

Esta tradição de ascendência divina, destinada a durar para sempre, segundo Sakamaki, insuflaria “no espírito nacional o conceito de um passado nobre, rico de grandes tradições”, entre elas as artes florais que se culimariam mais tarde na ikebana.

Monica Martinez

domingo, 19 de dezembro de 2010

Boas festas e feliz 2011



Os laços da flor com a natureza rompem-se no momento em que ela é cortada. Ao ser colocada em um vaso, a alma da flor e a alma do amante das flores fundem-se numa só chama. Neste instante, que ao longo do tempo os grãos-mestres vêm chamando de kiwa, a planta renasce. "Kiwa é o momento em que os nossos espíritos se elevam na mais alta emoção", diz o atual grão-mestre Sen´ei Ikenobo.

Neste sentido, diz ele, fazer uma ikebana não é apenas compor um arranjo que seja atraente aos olhos. Antes, é buscar a comunicação perfeita entre o coração do ser humano e o coração da planta.

Votos de boas festas e um ano novo próspero, saudável e belo,

Monica Martinez