terça-feira, 28 de dezembro de 2010

As bases filosóficas da ikebana: o xintoísmo


A meu ver, a ikebana reúne duas grandes tradições nativas japonesas, o Xintô e o Bushidô, além do Budismo originário da Índia, que chegou ao país vindo da China e foi sendo incorporado às práticas locais a partir do século VI d.C..

A primeira tradição é a do xintoísmo (Xinto significa o Caminho dos Deuses). Durante a aula do professor Manabu Noda, do Instituto de Treinamento Central Ikenobo, de Kyoto, Japão, realizada em outubro de 2010, foi surpreendente notar a delicadeza com que o docente limpava a borda do vaso após a finalização do arranjo. Para concluir a obra, ele despejou delicadamente água de um recipiente especial, tornando aquele simples gesto um grande ritual de purificação.

Em Filosofia: Oriente e Ocidente (editora Cultrix), o estudioso Charles Moore, ex-professor de filosofia da Universidade de Yale, lembra que “pureza e limpeza são ideais práticos e espirituais” do xintoísmo (p. 287), a mais primeva das crenças japonesas. Na mesma obra, Shunzo Sakamaki, professor de História da Universidade do Havaí, lembra que as orações então feitas eram para o “bem-estar físico e a prosperidade temporal” (p. 152).

O motivo? Como o mitólogo Joseph Campbell lembra em O Poder do Mito (Editora Palas Athena), não havia os conceitos de pecado ou benção espiritual divina como existentes no pensamento judaico-cristão. Sakamaki diz que não havia sequer uma palavra para “designar a Natureza como algo à parte e distinto do Homem (...). Este era tratado como parte integrante de um todo, intimamente associado e identificado com os elementos e as forças do mundo em seu redor (p. 150).

Talvez a união do ser humano com o todo no xintoísmo ajude a compreender a fala do atual grão-mestre Sen´ei Ikenobo, quando ele diz que: “Os laços da flor com a natureza rompem-se no momento em que ela é cortada. Ao ser colocada em um vaso, a alma da flor e a alma do amante das flores fundem-se numa só chama. Neste instante, que ao longo do tempo os grãos-mestres vêm chamando de kiwa, a planta renasce".

De toda forma, essa noção do ser humano integrado à Natureza, de a terra ser um espaço sagrado – tão cara à mentalidade de preservação ambiental contemporânea – está na base das duas regras fundamentais da ikebana ikenobo conforme explicado pelo docente Noda: o espírito de harmonia e a beleza do espaço. O espírito de harmonia tenta reproduzir a beleza da planta natural. Já a beleza do espaço procura acolher os espaços vazios como parte da composição do arranjo. Como a professora Emília Tanaka costuma dizer, as plantas são reavivadas de forma artística, isto é, ação humana tem o objetivo de ressaltar ainda mais a beleza das plantas.

Segundo Sakamaki , o “universo físico era considerado tripartido – o firmamento etéreo acima, o mundo na superfície da terra, e as sombrias regiões inferiores nas entranhas dela” (p. 150). Parece , portanto, que o xintoísmo também ajuda a compreender a base técnica de alguns dos estilos, como o Shoka, com sua divisão entre galho principal (shin), que na escola ikenobo representa o ser humano; galho secundário (soe), o céu; e galho terciário (tai), a terra.

Finalmente, e à semelhança de muitas outras tradições, o Xinto entende que o império japonês tem uma linhagem divina, uma vez que segundo esta tradição a dinastia teria sido fundada por um neto da Deusa Sol há mais de dois mil anos. Trata-se, claro, de uma base mítica e não histórica, porém esta seria a base do senso de lealdade do cidadão para com os pais, os mais velhos, os superiores, o país e o imperador. E também explicaria a profunda reverência entre aprendiz e o mestre que ensina sua arte.

Esta tradição de ascendência divina, destinada a durar para sempre, segundo Sakamaki, insuflaria “no espírito nacional o conceito de um passado nobre, rico de grandes tradições”, entre elas as artes florais que se culimariam mais tarde na ikebana.

Monica Martinez

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